A minha liberdade

                         

                            Chove lá fora. As vidraças estão húmidas e pegajosas do fumo que sái do fogão a lenha.

Sentado a um canto daquela sala escura e triste, o meu avô parecia dormir mas estava tão acordado como a chuva que molhava as pedras da calçada.

                             Eu olhava para ele, na ingenuidade dos meus doze anos e pensava como deveria ser triste ter aquela idade, a idade do meu avô; pensava como se sentiria naquela cadeira, preso para sempre, depois de uma vida inteira de trabalho. E para quê ? Para nada !.

                             Na sua mão esquerda, os dois únicos dedos que lhe restavam, mexiam sem cessar, como que à procura dos outros companheiros de outrora. Na boca negra e quase sem dentes, uma beata amarela e fumegante, consumia-se lentamente ameaçando queimar aqueles lábios já fartos de protestar pela vida fora. A magra pensão que recebia, mal chegava para comprar o papel de fumar e a onça de tabaco. Era com uma certa alegria que o via enrolar aqueles cigarros com perícia, colados com a sua saliva feita de fel e desilusões!

                              Duas horas da tarde. Lá fora continua a chover. As pedras da rua chiam com a água que lhes vai caindo em cima. Ouve-se um trovão ao longe e um clarão ilumina por completo a sala. Refugio-me nos braços frios do meu avô, quentes de carinho. Sinto medo, medo do trovão, medo da vida. Acaricio-lhe a perna direita que está inerte para sempre. Na oficina onde trabalhou quase quarenta anos, um pesado lingote de chumbo caíu-lhe em cima da perna e deixou-a naquele estado lastimoso. Aquele mesmo chumbo que ele tantas vezes moldou em caracteres da vida, pregou-lhe uma partida.

                               Nada teve dó dele! Só eu sinto alguma compaixão mas na minha pouca idade que posso eu fazer? Chorar por ele? Nada adiantará!

                               Pouco passa das cinco e meia e continua a chover. Parece que não vai parar nunca. O meu avô aconchega-se no xaile que era da minha avó já falecida. Embrulha-se nele a tremer e fecha os olhos já hà muito vazios de lágrimas. Quando era jovem, o meu avô tinha ilusões como toa a gente daquela idade. Sonhava e fazia mil e um projectos para o futuro mas tudo lhe saíu errado. Quando a minha avó era viva, fazia-lhe companhia nos seus pensamentos e animava-o. Mas os anos foram passando e tudo estava na mesma, nada mudou, a pobreza continuou. A minha avó foi sempre uma mulher decidida e cheia de coragem e um dia atou uma corda ao pescoço. Num segundo todas as ilusões acabaram e os sofrimentos também. Tinha eu oito anos e um arrepio enche-me todo o corpo. Está enterrada lá fora no quintal à chuva porque o meu avô não quis que ela fosse para o cemitério da aldeia. Ali, estava mais perto dela e não raras vezes via-o lamentar-se junto à campa. Passava ali horas a fio como que a encontrar coragem para fazer o mesmo.

                                Já é muito tarde e a chuva não parou. Lá fora, na rua da minha aldeia, alguém passa a correr. Não se vê mais ninguém e o frio faz companhia à chuva.

                                 O silêncio na sala é terrível e o meu avô dorme hà muito. Eu continuo acordado pensando em tudo. Penso na minha vida de criança e o que poderei ser um dia. De repente sinto um medo atroz e as minha pernas começam a tremer. Só tenho doze anos mas tenho tanta coragem como a minha avó. Não, não quero chegar até onde chegou o meu avô. Não, não quero!