O Felizardo
Lá estava ele, no seu habitual cantinho, fumando o seu cachimbo feito de cana, atirando rolos de fumo cinzento para a atmosfera pura e vazia de estranhos vizinhos que não fossem o oxigénio e o azoto.
Como de costume, vestia a velha e desbotada camisa às riscas largas e mal cozida mas não rota. As botas, com sola de borracha, sem nunca terem conhecido o cheiro acre da pomada, estavam luzidias e gordurosas da enxúndia de galinha; O Felizardo, como lhe chamávamos, nunca desperdiçava nada do frango que amiúde degolava! Até as próprias penas eram destinadas à encherga limpa e cuidada do nosso velho e simpático amigo.
Hà mais de dez anos que conhecemos aquelas calças! Feitas da pele de uma velha cabra que teve a pouca sorte de encontrar pela frente um dos raros automóveis que se aventuram por aquelas paragens, continuam a aquecer as pernas magricelas e alvas de quem já devia ter pelo menos 90 Invernos! Nunca soubemos ao certo a idade do Felizardo, porque ele próprio não sabia! Dizia ele que não tinha "anos"- como nos ouviu dizer - mas sim muitas noites e dias! Nunca o contrariámos, pois sabíamos quão feliz era o velho homem na sua ignorância sadia e livre de preocupações.
Uma vez quis saber o que era aquele objecto frio e estranho que tínhamos no pulso esquerdo! Depois de termos tentado explicar, o Felizardo riu-se dizendo que não compreendia como nós tínhamos coragem de medir o tempo. Para ele nunca havia pressas nem obrigações de fazer aquilo ou aqueloutro. Tudo corria numa normalidade simples e apaziguante. O velho tinha razão!
Tínhamos por hábito oferecer-lhe um dos nossos cigarros mas o Felizardo recusava sempre porque preferia os de "fabrico próprio". Uma vez tentou fumar o cigarro que lhe demos mas não chegou sequer a puxar duas fumaças porque se engasgou, ficando até um pouco carrancudo, pensando que estávamos a tirar partido da nossa "superioridade".
Até porque preferia fumar do seu cachimbo cheio com uma mistura que, francamente, nunca soubemos o que era. Sabíamos era que não lhe faziam tosse como os nossos "civilizados" cigarros!
Naquele dia de Inverno, com dois ou três graus abaixo de zero, o Felizardo desafiava o frio, enquanto nós tiritávamos e batíamos os pés de protesto. Debaixo da sua camisa, nada mais havia senão um corpo rijo e quente, onde o sangue vermelho e contente, fazia os seus quilómetros habituais, levando vida e serenidade àquele "pobre" velhote que, muito melhor do que nós sabia dar valor à condiçao que lhe foi imposta pela natureza. E se assim não fosse, o nosso anfitrião não acharia tão belo o céu, o pequeno regato e os montes, o frio e a ventania, que faziam parte de si mesmo. Sem tudo isso não poderia viver tão feliz como vivia!
Dentro da sua cabana, quente e acolhedora, sentia todas as noites a sua paz de espírito e o silêncio da sua simplicidade e ignorância do supérfluo. Não havia para ele coisas a mais ou coisas a menos; havia muito simplesmente o essencial para poder sentir-se com desejava e como pensava que todos deviam sentir-se. Não podia levar à paciência, o facto de nós, os previligiados do progresso, termos tantos dissabores e incertezas; com ele e a sua maneira de pensar, aprendemos que a simplicidade é a arma mais forte que o ser humano pode têr. Ele é que tinha a perfeita noção do útil e melhor do que ninguém, sabia tirar proveito do bom e do belo.
Começou a aquecer as suas batatas com cebola e fazer o caldo de hortaliça verde e fresca. Como sempre, das poucas vezes que o visitávamos, não recusámos o seu sincero convite. O vinho nervoso e borbulhante pisado pelos pés magros do velho, refrescou-nos a goela e aqueceu-nos o espírito. Enquanto comia, o Felizardo olhava para nós e pensava talvez, pela maneira alegre e sôfrega como devorávamos as suas apetitosas batatas, que nos devíamos sentir felicissimos por termos o previlégio de podermos trincar aquele 'maná' ! Eram as suas batatas. Eram as suas mãos cheias de calos da enxada e o seu suor que nos servia naquela mesa tosca e mais velha que o mais velho dos seus visitantes.
O dia começava a findar. O frio subia de intensidade e a choupana do Felizardo começava a aquecer à luz da candeia alimentada a carboreto. Tivemos de nos despedir do velho e prometemos voltar um dia. Sabemos que temos sempre à nossa espera as batatas quentes com cebola e o caldo fumegante e quente do caldo de hortaliça. E também temos a certeza que o velho Felizardo continuará a fumar o seu cachimbo cheio daquela mistela que ainda não conseguimos descobrir.
Metemo-nos no carro; o motor roncou impestando o ar que o velho respirava. Acenámos ao Felizardo e fomos andando devagar pelo caminho de cabras. Sentimos uma inveja tremenda ! Ele, o Felizardo, não sabia o significado daquela palavra !