O Retrato

  Num quarto solitário                                                                          

Onde o pó já é velho e o caruncho é rei,

E onde a paz é rainha,

Dorme alguém, alguém que foi,

Mas já não é.

O ar viciado, pesado e denso,

Entra e sai daquela boca,

Daquela boca já feia e rugosa

Onde o batom já não pega,

Com dentes que foram belos,

E já não são de tanto mastigar o tempo

Que passou e já não volta.

A fronte, qual rocha esculpida

Por mão trémula e nervosa,

Desenhava sulcos profundos que em tempos não foram,

Mas agora são, para sempre.

O cérebro, equação esquisita, lembra tempos passados

Dos amores já idos, que já não voltam,

Nunca mais.

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Acordou!

Os braços esqueléticos

Com peles flácidas e feias,

E ossos já moles e frágeis,

Apoiaram-se na cama de quase um século.

Ajeitou o cabelo quebradiço e afagou o pescoço,

Que foi belo e já não é.

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Ao fundo, na parede

Esburacada e feia onde o bolor fez sementeira,

Um retrato amarelo mostra alguém

Mostra beleza e graça,

Dos anos distantes que foram

E já não voltam.

Duas lágrimas grossas pesadas e tristes como a noite,

Deslizaram a custo pela cara,

Pela cara que foi bela sem rugas e sem traços,

Pela cara que já não tinha,

Nunca mais!

Tremeu, não de amor que passou,

Nem de medo nem de raiva,

Mas de pena no presente,

Do tempo que já passou,

E não volta, nunca mais.

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Naquela cama já vazia,

Dalguém que foi e já não é,

Dalguém que já morreu,

Paira a solidão da paz.

E na parede, esburacada e feia,

Onde o bolor continua,

Ainda está aquele quadro,

Daquela que foi bela e feia ,

Para sempre.